Por que ainda temos medo dos remédios psiquiátricos?

Durante minha prática clínica como psiquiatra já me deparei diversas vezes com as seguintes questões: “esse remédio vicia?”; “não quero ficar dependente de nada hein doutor!”; se estou bem, porque preciso continuar essa medicação?” Estes e outros questionamentos parecem girar muito mais em torno das medicações e dos tratamentos psiquiátricos que em outras áreas da saúde. Vamos tentar responder a essas dúvidas e entender o porquê delas aparecerem mais em relação aos tratamentos psicológicos e psiquiátricos que em outros tratamentos médicos “tradicionais”. Podemos começar pelo cérebro...

Foto: am JD / Unsplash

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O cérebro, assim como o coração, o rim e o fígado, é um órgão do corpo humano e assim como todos os nossos órgãos, eventualmente, passa por algumas modificações, alterações, distúrbios e doenças. Os desequilíbrios que encontramos no coração, por exemplo, podem acarretar fenômenos que conhecemos como “batedeira”, “aperto no peito”, “infarto agudo do miocárdio”, “insuficiência cardíaca”, “coração grande”, entre outros, que necessitam de tratamentos específicos para restabelecer o equilíbrio do órgão para sua recuperação e evitar complicações futuras. Dessa forma, no caso do coração, somos orientados a realizar diversas tarefas como atividade física, manter uma dieta saudável, ter bom sono e também, quando necessário, usar medicamentos anti-hipertensivos (para pressão alta), hipoglicemiantes (para Diabetes), antiarrítmicos (para arritmia cardíaca), entre outros. Fazendo uma comparação com o cérebro, quando ele apresenta tais desequilíbrios, os fenômenos que observamos são “tristeza”, “ansiedade”, “delírios”, “alucinações”, “depressão”, “bipolaridade”, “obsessões e compulsões”, “irritabilidade”, “transtorno do pânico”, “esquizofrenia” e várias outras situações. E do mesmo jeito que vimos em relação ao coração, esses desequilíbrios também necessitam de tratamentos específicos para a recuperação do órgão para nos sentirmos melhor, com maior sensação de bem-estar, felicidade, equilíbrio e, claro, evitar complicações. Para isso, além das práticas já descritas acima como atividade física, manter uma dieta saudável e bom sono, temos a psicoterapia, a meditação e, também, o uso de antidepressivos (para depressão e ansiedade), antipsicóticos (para delírios e alucinações), estabilizadores do humor (para bipolaridade), sendo alguns exemplos desses tratamentos. 

Dessa forma, antes de tudo, devemos entender que os tratamentos psicológicos e psiquiátricos existem para restabelecer o equilíbrio e o bom funcionamento do cérebro, órgão tão essencial aos seres humanos, devendo receber atenção plena caso esteja em desequilíbrio, assim como o coração, o rim, o fígado e todos os outros órgãos.

Mas porquê parece ser tão difícil entendermos a necessidade do uso de antidepressivos, antipsicóticos, entre outras medicações, para o tratamento de nossas alterações emocionais e comportamentais? As ideias de dependência, vício ou de “deixar dopado” relacionadas aos medicamentos psiquiátricos estão muito ligadas ao preconceito às enfermidades que alteram nossas emoções, sentimentos e comportamentos, não as considerando tão relevantes e fundamentais quanto as doenças que atacam nosso “corpo” e nosso “externo” ou ainda negando totalmente a sua existência. Essa desvalorização e negação da sociedade daquilo que sentimos acaba por reprimir as pessoas a pedirem ajuda, formando um ciclo vicioso de preconceito e sofrimento, enquanto escutam coisas do tipo: “Você não precisa de remédios desse tipo, seja forte!”; “pare de preguiça e faça alguma coisa!”, como se ser forte ou ter preguiça tivessem alguma coisa a ver com transtorno depressivo, transtorno ansioso e esquizofrenia, por exemplo. Nunca ouvi ninguém dizer a um paciente com Diabetes “deixe de ser fraco e baixe este açúcar do sangue!”, parece hilário, mas muitos ainda pensam assim em relação às doenças mentais, infelizmente.

Vale ressaltar que alguns medicamentos psiquiátricos podem sim causar dependência, assim como vários outros medicamentos de outras áreas da saúde. Os “tarja preta”, assim chamados pois apresentam por lei uma rotulação preta em sua embalagem, possuem a propriedade intrínseca de levar aos mecanismos de uso abusivo, tolerância e dependência a algumas pessoas. É o caso dos benzodiazepínicos (clonazepam, diazepam, alprazolam, etc...), psicoestimulantes (lisdexafentamina, metilfenidato, modafilina), mas também opióides (morfina, oxicodona, tramadol) usados no tratamento de dores e fentanil para anestesias. Apesar dessa propriedade intrínseca, na grande maioria dos casos em que ocorre dependência ou “vício” a esses medicamentos, isso se dá por mal uso da medicação sem consentimento ou orientação médica, o que não deveria ocorrer com nenhum tipo de remédio.

Por fim, vamos analisar a seguinte situação: “Fulano com pressão alta vai ao médico que lhe receita um anti-hipertensivo para manter sua pressão adequada e, assim, evitar complicações futuras e aumentar sua qualidade de vida. Após 10 anos em uso da medicação, mantendo a pressão normal e sem outras complicações relacionadas, a pessoa se pergunta porquê está tomando este anti-hipertensivo, uma vez que sua pressão está normal há 10 anos. Ela então resolve parar a medicação”. É fácil imaginar que em pouco tempo a pressão dessa pessoa volte a ficar alta e ela necessite retornar ao uso da medicação novamente, sem falar em todos os riscos de complicações que ela se colocou nesse período. Aí vem a pergunta: esta pessoa é viciada neste anti-hipertensivo? Ela é dependente dele? Faz sentido parar esta medicação se é exatamente ela que está mantendo a pressão normal? 

Dessa mesma forma deveríamos pensar em relação aos tratamentos psicológicos e psiquiátricos. Não se fala em dependência ou vícios para medicamentos que ajudam a tratar prejuízos funcionais do nosso organismo trazendo a saúde de volta. E assim como no anti-hipertensivo, se uma pessoa parar o uso, por exemplo, de um antidepressivo para o tratamento de um transtorno depressivo sem orientação médica, ela provavelmente iniciará um novo episódio depressivo, possivelmente mais intenso, grave, duradouro e refratário, podendo evoluir inclusive para quadros psicóticos (alucinações e delírios), suicídio entre outras complicações.

Não mantenha este ciclo vicioso de preconceito e sofrimento! Procure entender seus sentimentos e pedir ajuda psicológica e psiquiátrica quando necessário!

Os transtornos mentais podem incapacitar e prejudicar tanto quanto as doenças “físicas” e, assim como elas, também possuem tratamentos eficazes para restabelecer a saúde, o equilíbrio e o bem-estar.


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Dr Ricardo Jonathan Feldman

Psiquiatra no Centro Feldman de Saúde, fundada em 2012, no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), no Residencial Israelita Albert Einstein e professor na Pós-Graduação de Psiquiatria do HIAE, atua no diagnóstico, tratamento e ensino dos diversos transtornos psiquiátricos, focando na melhora da qualidade de vida, da sensação de bem-estar e do equilíbrio físico, mental, social e espiritual.