ESTAR À PROCURA | 01
Histórias De Quem Procura Alguém
Prefácio
Esta é uma história sobre o amor.
Mas não aquele amor fácil, que cabe em cartões postais ou promessas sem sentido. É o amor que dói, que desorganiza, que exige perder pra ganhar de novo o que estava há muito tempo adormecido.
José acreditava ter perdido um filho. Mas o que ele encontrou foi algo ainda maior: a coragem de enxergar o outro além das formas, e de reconhecer, naquilo que muda, o que sempre permaneceu, no mesmo lugar.
Entre o silêncio e o choro, entre o medo e a coragem, há um pai que aprende que o amor se esconde nas entrelinhas de quem somos, e um filho que descobre que às vezes precisamos nos afastar pra nos tornarmos a única versão possível de nós mesmos.
O “Estar à Procura” dessa vez conta a história de um pai, um filho e um reencontro com a vida. Porque às vezes, amar é deixar nascer o que sempre esteve ali.
Parte I: Um Menino Triste
Me chamo José. Dos meus 45 anos, 15 passei com a Marta, minha mulher. Escolhi ser engenheiro civil mais pra impressionar meu pai, cabra duro na queda, também engenheiro. Sabia o peso exato de um muro, de um copo de whisky e de suas mãos batendo em mim. Temos três filhos, a Mariana, o Lucas e o Eduardo, cada um deles com um intervalo de um ano, como se a vida tivesse pressa em nos encher de vozes, brinquedos espalhados e o barulho bom da casa cheia.
Mariana sempre foi a mais curiosa, uma menina esperta que falava pelos cotovelos e adorava fazer perguntas impossíveis. O Lucas herdou de mim a paixão por construir, desmontava tudo o que via pela frente, dos carrinhos às torradeiras, pra ver o que tinha dentro e depois tentava montar tudo, quase nunca conseguindo, claro. E o Eduardo… o Edu era o solzinho da casa. Uma criança alegre, de riso fácil, que parecia ter nascido pra iluminar tudo.
Ele adorava brincar com os irmãos, especialmente com a Mari. Deixava ela colocar suas roupas, seus vestidos, os sapatos de salto da mãe, até pintava a boquinha dele com seus batons. E ele vinha, tropeçando pela sala mostrar pra gente, enquanto ria daquele jeito gostoso, que enchia a casa de vida. Eu olhava e achava graça. Às vezes, eu tirava fotos escondido, pra mostrar depois pra Marta.
Outras, confesso, pedia pra ele chutar uma bola comigo no quintal. Ele não gostava muito, mas ia. Dava uns chutes tímidos, errava o alvo, chutava o ar, ria e voltava correndo pras brincadeiras com a irmã. Mas dava tempo pra eu tirar uma foto pra mostrar depois pro pessoal do escritório.
Mas o tempo foi passando, e alguma coisa mudou.
Quando o Eduardo começou a ir pra escola, foi como se a luz dele tivesse diminuindo aos poucos. No começo, eram pequenos silêncios. Depois, foram dias inteiros. De repente, aquele menino falante virou um garoto calado, trancado no quarto, com um olhar distante que eu não sabia como acessar. O menino que cantava alto no chuveiro passou a andar em silêncio pela casa. As risadas diminuíram, os olhos ficaram fundos, cansados. O quarto tinha um sinal de "Proibido Entrar” e se transformou em um lugar da casa que ninguém podia se aproximar.
Nas refeições ele não falava mais. Marta tentava puxar conversa, mas ele respondia com um sim ou um não, ou apenas balançava a cabeça. Mari dizia que ele estava "na dele”, e o Lucas, distraído, fingia não perceber. Mas eu, eu via. Eu via aquele brilho indo embora. E não tinha ideia do que fazer pra trazê-lo de volta. Às vezes eu escutava seus passos apressados no quarto à noite. Outras, era só o som do nada. O silêncio que pesa mais do que um muro de concreto.
Lembro de uma noite que fui no quarto dele, só pra deixar uma revista de carros que tinha comprado. Na escrivaninha, encontrei a cartela dos comprimidos pra dormir da Marta. Tinha uns 4 comprimidos faltando. Meu coração parou. Eu não sabia o que pensar, muito menos o que fazer. Fingi calma, chamei minha mulher baixinho, e decidimos esconder todos os remédios da casa. Não sei se ele soube que a gente sabia.
Mas o problema não era o que ele podia tomar, mas o que ele já estava engolindo calado há anos.
Depois disso, eu olhava pro Edu e tentava encontrar o menino que ele sempre foi. Às vezes, via um vestígio, um sorriso rápido, uma lembrança. Mas logo desaparecia. Não sabia em que momento ele tinha deixado de ser aquele menino que corria com os sapatos da mãe e o vestido da irmã. Não sabia se foi a escola, o mundo, ou nós. Mas sabia que morava uma tristeza nele que não aprendi a medir na faculdade de engenharia, e um medo em mim que não conseguia nomear. Eu acho que ajudei a construir o muro que naquele momento nos separava.
Tinha dias que eu ficava olhando pro teto e me perguntava se iria ver meu menino crescer. Se ele iria conquistar tudo aquilo que sonhei pra ele, se formar, se casar, ter filhos.
Mas será que esses também eram os sonhos dele? Ou só os meus?
Todo sábado um novo capítulo.
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