Estar na Pele da Bruna

Página 4

O Isolamento Silencioso de Quem Sofre Violência Doméstica

 Por que nós, vítimas de violência doméstica, nos isolamos?

 Além da culpa e da vergonha que carregamos — causadas tanto pelos julgamentos externos quanto pelos internos — há o fato de que, sinceramente, parece que ninguém tem capacidade de nos entender.

 Eu nunca fui o tipo de pessoa que gostava de me colocar no papel de vítima. Fui ensinada a ser forte. E, para muitos, ser forte significa exatamente isso: não ser vítima. Ser responsável pelas próprias escolhas e decisões — e lidar com elas.

 Mas há um mundo de motivos por trás desse isolamento.

 Lembro exatamente do dia em que tive uma crise de pânico e decidi, finalmente, denunciar meu ex-marido e pedir uma medida protetiva. Isso só aconteceu depois de ouvir, repetidamente, xingamentos como: “lixo humano”, “nojenta”, “vagabunda”, “parasita”, “ser sem luz”, entre outros.

 Como explicar para alguém que você está passando por tudo isso... sem ter feito nada?

 Ninguém acredita. É quase automático o pensamento: “Alguma coisa ela deve ter feito pra isso. Claro, não justifica, mas algo deve ter acontecido.” Existe sempre essa necessidade de atribuir uma parcela de culpa à mulher.

Vivemos em uma sociedade que, desde cedo, nos ensinou que Eva manipulou Adão para comer o fruto proibido. Crescemos com esse imaginário coletivo em que é impossível que a mulher não tenha provocado *alguma coisinha*. Mesmo eu, que não fui criada numa tradição católica, percebo o quanto essa cultura está enraizada.

E quando olhamos para a história recente, percebemos como esse cenário é estrutural. Há menos de 100 anos, mulheres sequer tinham direito ao voto. Apenas há 60 anos conseguimos ter nosso próprio CPF. Antes disso, éramos legalmente apenas uma extensão dos nossos maridos. Não éramos consideradas uma pessoa na sociedade.

Quando decidi denunciar, em meio à crise de pânico, lembro bem do que ouvi de um policial: “ele vai ser sempre o pai do seu filho”. Como se isso anulasse todo o sofrimento.

Mais tarde, durante uma audiência, ouvi do juiz que eu deveria ter poupado o meu ex-marido no processo. Em outras palavras: que eu deveria ter *omitido os fatos* para protegê-lo.

Mas e eu?

Quem vai me poupar?

Eu tenho muitas amigas. Minha família é próxima. Recebi apoio, sim. Mas ninguém realmente me entendia. Cheguei a ouvir que o que eu estava sentindo era apenas sofrimento pelo fim do casamento. Que talvez eu ainda estivesse sofrendo por ele.

As amigas me deram apoio no começo, mas com o tempo as ligações se tornaram raras. Visitas, nenhuma. E eu estava ali, sozinha, trancada em casa, cuidando 24 horas por dia do meu filho, que tinha menos de dois anos.

A verdade é que eu também não ligava para ninguém. Afinal, quem vai me entender?

Mas uma visita teria sido um respiro no meio de tanto sofrimento.

A culpa não é de ninguém. Ou é de todos.

Talvez não importe.

Cada um luta com seus próprios demônios. E a maioria das pessoas realmente não sabe o que dizer quando alguém está vivendo esse tipo de luto.

E foi um luto.

Um processo inteiro de luto.

Foi solitário demais passar por isso.

Eu ainda tive sorte: tive acesso a recursos, consegui fazer terapia.

Mesmo assim, foi muita solidão.

A terapia foi essencial no meu processo de resignificação. De redescoberta. De reabertura para a vida.

Mas, mesmo assim, foi solitário.

Se você está passando por algo parecido, saiba que você não está sozinha — mesmo quando tudo ao redor parece silêncio. O que você viveu ou está vivendo não é culpa sua. É possível pedir ajuda, é possível sair desse lugar e, aos poucos, reconstruir sua história. Mesmo com dor, mesmo com medo, mesmo no isolamento. A sua vida vale. Você vale. E há caminhos de cura — mesmo que, no começo, eles pareçam invisíveis.

***

Bruna Ferreira

Advogada de formação, hoje gerente de projetos em tecnologia (onde os prazos são curtos e os cafés longos). Mãe do Luca — especialista em noites mal dormidas e amor incondicional. Sobrevivente de violência doméstica, transformando dor em força e ajudando outras mulheres a fazerem o mesmo. Sempre em busca de evolução (e umas horinhas de sono também).

Instituto Bem do Estar

Queremos gerar conhecimento aplicável sobre a saúde da mente


https://www.bemdoestar.org/
Anterior
Anterior

Estar na Escuta na Parada LGBT+: quando escutar é um ato de cuidado e orgulho

Próximo
Próximo

Quando a blusa lilás me ofendeu!