O ser humano descartável e a esperança – Sr. Raimundo

Era o último dia de aula em que eu ministrava um curso sobre questões de sustentabilidade — ambientais, sociais e econômicas — para queridos e incríveis professores e professoras alfabetizadores da rede municipal de uma capital de um estado brasileiro. Para esse dia especial, planejei uma aula prática, ou seja, "in loco". Então, embarcamos em um ônibus, no qual nem cintos de segurança havia, e seguimos por um caminho de terra, sacolejando sem qualquer garantia de conforto ou segurança, enquanto adentrávamos a mata do interior dessa amada capital brasileira.

Chegamos! Ao descer do ônibus, fomos recebidos por um céu povoado por corvos. O cheiro, insuportavelmente fétido, se entranhava nas nossas narinas, provocando uma sensação de náusea. O impacto foi devastador ao nos depararmos com imensos paredões de lixo, que se erguiam em direção ao céu, imponentes e ameaçadores. Entre essas muralhas de lixo dispostas numa espécie de círculo, uma fossa, se mostrava diante de nós. Palavras não conseguem capturar a magnitude daquela cena desoladora. Era uma visão aterradora, simplesmente estarrecedora!

Refleti sobre a questão ambiental. Todo aquele lixo, imenso e insuportável, é gerado por nós, seres humanos! Contudo, esse impacto pareceu insignificante diante da cena que se desdobrou diante de meus olhos: crianças e adultos, imersos naquele mar de lixo, vasculhando em busca do que pudesse ser aproveitado, até mesmo comida. Vi, então, uma criança, com um brilho de surpresa nos olhos, ao encontrar um pote com restos de iogurte. Com as pontas dos dedos, ela tentava saborear a migalha de uma vida que, para muitos de nós, seria e é desperdiçada.

Foto: Acervo pessoal/ Sandra

Tentei respirar, mas era difícil, pois, a cada suspiro, o cheiro insuportável invadia meu corpo. Foi então que vi um senhor agachado, cabisbaixo, com a pele marcada por erupções, resultado do contato com o lixo. Me aproximei e perguntei se ele poderia conversar comigo. Ele não me olhou nem respondeu, permanecendo imóvel. Insisti, e finalmente ele, sem me encarar, disse: "Falar comigo por quê? Vocês vão embora e tudo continuará igual. Ninguém nos vê aqui. Somos o lixo descartado. Somos seres humanos descartados. Você tem nojo de mim e não pode fazer nada para mudar isso."

Nesse momento, e eu realmente não sei de onde surgiu essa ideia, respondi: "Há algo que posso fazer. Se o senhor aceitar tirar uma foto comigo, eu prometo que a estamparei em todos os lugares onde for possível. Em cada palestra que eu der, vou finalizá-las com a sua foto e contar a história deste lugar, para mostrar que existem pessoas, inclusive crianças, vivendo aqui."

Naquele instante, ele ergueu a cabeça e, finalmente, pude enxergar seus olhos, marcados pela tristeza. Me apresentei e perguntei seu nome: "Sr. Raimundo". Ele estendeu a mão, e eu a apertei com respeito. Senti, talvez apenas uma impressão minha, que ele queria saber se eu teria coragem de tocar sua mão, coberta de pruídos devido ao contato constante com o lixo.

Apertamos as mãos, e quando me preparei para tirar a foto, ele disse: "A foto precisa ser no meio do lixo, dentro do fosso." Tentei disfarçar meu pavor (acho que não consegui), respirei fundo, sentindo aquele ar denso, turvo e cinza. Pedi, em pensamento, para o meu anjo da guarda me ajudar a não vomitar, e então seguimos para o centro do fosso do lixão, caminhando sobre metros e metros de lixo, rodeados pelas imensas montanhas de lixo que nos cercavam e me apavoravam.

Não há palavras que possam capturar o horror de um lugar como aquele, mas, nos olhos do Sr. Raimundo, pude perceber um lampejo de esperança na hora da foto. Nós nos olhamos e, contra toda a adversidade, conseguimos sorrir. Nos abraçamos, e uma de minhas alunas registrou esse momento, a foto que vocês podem ver ao lado desta história.

Ah, a esperança! Foi o Sr. Raimundo quem me ensinou a sempre carregá-la no coração, não importa o quão desolador o cenário seja.


Beijos de Luz.



***

Sandra Marcondes

Psicanalista, advogada e com a esperança sempre carregada no coração!




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