O beijo amargo da desilusão daquele amor...

Eu juro que eu pensei que aquele amor fosse para sempre... Ele era tão lindo... Tudo o que eu tinha idealizado... Perfeito! Só que ele, era ele, e não a minha fantasia... Quanta dor...


Cena 1...
– Ele(a) é lindo(a) e maravilhoso(a)! Inteligente demais! Eu admiro tudo o que vejo nele(a). Tudo mesmo. Gostamos das mesmas coisas... músicas, passeios... e até a comida preferida é a mesma: espaguete ao sugo. É o profissional mais incrível que eu já conheci. Meu coração dispara de emoção só de pensar nele(a)... Com ele(a), o tempo para. Ele(a) já até disse que vai se casar comigo em breve!

– Você diz que, com ele(a), o tempo para... Que seu coração dispara... Você se lembra de já ter sentido algo assim por alguém antes?

– Nem me lembro do meu passado. Nunca amei outra pessoa. Aliás, o passado nem existe antes dele(a)!

(Suspiros e continua com brilho nos olhos...)
Como podemos combinar tanto? Ele(a) é a pessoa certíssima da minha vida. Só pode ser coisa de outras vidas. Minha alma gêmea. É como se fôssemos um só! Tenho certeza disso tudo...

Mais suspiros, e a fala prossegue...
– A única coisa é que ele diz que não pode me assumir como namorada porque é famoso na área profissional em que atua e prefere me resguardar da maldade dos outros. Ele diz que sofre muito com a inveja alheia e quer me manter longe disso. Vejo isso como um cuidado comigo. Só por isso ele não assume nossa relação.

– Você diz que seu relacionamento é às escondidas... O que é um relacionamento às escondidas significa para você?

– Ah! Tudo bem. Eu compreendo, pois, como já falei, ele age assim só para me proteger. Só fico um pouco triste, porque é chato, né? Na frente dos outros, ele finge que não tem nada comigo.

(Silêncio e fisionomia séria...)
– Outro dia, eu estava na festa de aniversário dele, conversando com pessoas que eu não conhecia muito bem, e apontaram uma pessoa dizendo que ela era a namorada dele. E um tempo depois, estávamos apenas os dois na casa dele, quando a irmã tocou o interfone para entrar e ele pediu para eu me esconder no quarto até ela ir embora. Ele acabou negando veementemente que a pessoa era namorada dele, e disse, de forma repetida, que as atitudes dele eram justamente para me proteger da maldade e inveja dos outros, inclusive da irmã...


Cena 2 – Tempos depois...
(Chorando...)
– Tudo continua na mesma, mas eu gosto dele... Não consigo me afastar.

- Não consegue ou não quer?

(silêncio)


Cena 3

(Apática...)
– A vida vai passando e tudo fica igual... Quem sabe, um dia, ele me considere sua namorada... A propósito, pensei que a comida preferida dele fosse espaguete ao sugo, mas ele disse que nunca falou isso para mim. A comida preferida dele é a japonesa — e eu não como peixe cru. Mas eu continuo feliz... ou seja... eu já não sei mais de nada.

E a vida vai passando, eu aceitando e vivendo de migalhinhas e “café morno”.

    A mulher e/ou homem dessa nossa história pode se escutar amorosamente ao buscar respostas que revelem os afetos, fantasias, repetições e identificações inconscientes que sustentam essa sua posição:

Como o amor era demonstrado na sua casa/infância/adolescência?
O que te faz querer estar com ele?
Qual o seu sentimento quando ele diz que está te protegendo?
Você se sente acolhida nesta relação?
Você já viveu algo semelhante?
Quais sentimentos surgem quando vocês estão juntos em público?
O que significa ser assumida como namorada perante todos?

O que você acha que poderia acontecer se você exigisse ser assumida?

– Ele não assumiria e tentaria me manter “na prateleira” como sempre fez. Repetiria que me ama e me protege. E tudo continuaria da mesma forma... Ele sumiria por alguns dias. Eu olharia o Whatsapp o tempo todo para ver o último acesso dele. Ele retornaria quando quisesse, pegaria o “produto” (eu), da prateleira, usufruiria e depois descartaria numa boa — como faz há anos. Aliás, até isso tem diminuído na frequência. Mas, eu me permito... É tudo culpa minha que aceito uma situação dessas. Sem ele eu não consigo ser feliz. (choro)

     Em psicanálise, cada caso é um caso, e é sempre importante lembrar que criticar a dor alheia é desconsiderar que cada indivíduo enfrenta os desafios da vida conforme a sua história, as suas possibilidades e o seu próprio entendimento.
O mesmo sintoma, como culpa, medo, angústia, pode ter sentidos distintos para pessoas diferentes. Namorado(a), para alguns, pode significar alguém que acolhe e assume publicamente; para outros, pode ser alguém que está sempre prestes a abandonar; para outros, pode ser alguém que aprisiona, dá medo, angústia e por aí vai...

            De todo modo, eis algumas, dentre outras, possíveis razões psicanalíticas exemplificativas de uma pessoa permanecer numa relação em que não é assumida, com a justificativa de que é “para protegê-la”:

– A fantasia de ser a exceção na vida do outro — ou seja, essa pessoa acredita que é especial o bastante para que com o tempo ela consiga mudá-lo e conquistar de vez o amor dele do jeito que ela quer. Essa ideia sustenta uma esperança, que contradiz os fatos. Ela acredita que é única para ele, mesmo sem ser tratada como tal.

– Outra possível razão é a idealização do parceiro. Uma idealização intensa pode anular a si mesma, ao ponto de aceitar justificativas incoerentes, como “te proteger da maldade e inveja”, simplesmente para não ver o que está posto. A pessoa sabe, mas não quer saber que sabe. Não quer ver os fatos porque eles são insuportáveis. Tudo isso tem causas muito profundas e que são importantes de serem trabalhadas com um profissional da saúde mental.

              Cada pessoa oferece o que pode e deseja e/ou sabe desejar, dentro de seus limites. Não cabe julgamento! De todo modo, forçar, mesmo que inconscientemente, alguém a se encaixar em nossos ideais causa sofrimento, desconforto — tanto para quem força como para quem é forçado. Esperar algo do outro é natural, mas entender por que esperamos e o que fazemos dessa espera pode nos libertar. A felicidade é uma responsabilidade individual. Quando a depositamos nas mãos do outro, tentamos nos eximir da nossa própria responsabilidade de ser feliz, e tornamo-nos vulneráveis ao medo da perda e de muita dor.

                      No encantamento inicial, projetamos no outro nossos sonhos. Só que encanto quebra e mais cedo ou mais tarde, a natureza verdadeira do outro se revela porque o outro é um ser humano assim como nós mesmos. Surge, então, a desilusão: não porque o outro nos enganou, mas porque nós nos recusamos a enxergar como ele realmente é. É humano desejar, esperar, sonhar, fantasiar. Porém, amar não é incorporar-se ao outro e tornar-se um, é reconhecer o outro como outro — e, ainda assim, escolher estar lá ou não. É mais leve! Libertar-se da ilusão de nos tornarmos um só é o primeiro passo para amar com consciência e mais maturidade emocional — e viver com verdade para não vivermos uma vida toda, morna, com migalhas e com o beijo amargo da desilusão daquele amor...  Enfim, eu desejo que esse beijo amargo se transforme no fim de uma fantasia e no início de uma verdade consigo mesmo rumo à liberdade... Beijos de Luz!


***

Sandra Marcondes

Psicanalista, advogada e com a esperança sempre carregada no coração!

Instituto Bem do Estar

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