Por que nos sentimos culpados ao assumir nosso gênero ou sexualidade? 

A Sociedade como um todo, ou seja, todas as instituições civis, a família, as escolas, os governos, as igrejas, as empresas, os mais diversos grupos presentes na base de qualquer organização, roubaram por muito tempo grande parte da infância, adolescência e até mesmo da vida adulta das pessoas LGBTQIA+, na verdade infelizmente ainda roubam. Por não estarem dispostos e também não terem o mínimo de interesse em se desenvolver para lidar com a diversidade humana, expressada nas múltiplas formas de sentir e ser no mundo, acabam por apelar para desculpas religiosas, pretenciosas e rasas ainda muito permeadas por ódio e violência, impedindo a expressão natural, espontânea e saudável do comportamento e vida das pessoas. 

Foto: Aedrian / Unsplash

“O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento dele. Olha, eu vejo muita gente por aí dizendo: ainda bem que eu levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem.” 

- Jair Bolsonaro. 


Esse funcionamento de censurar e oprimir silenciosamente ou não, afeta explicitamente o desenvolvimento cognitivo, emocional e funcional de quem é submetido a tal vivência, levando muitos cidadãos e cidadãs a instabilidade e deixando enorme defasagem afetiva. Além dessa parcela da sociedade fazer manutenção de ideais retrógrados e discriminatórios sobre tudo que não está dentro dos padrões estabelecidos por esse grupo que é superestimado e dotado de privilégios, mantendo laços intensos com o patriarcado é claro, é evidente o quanto tais discriminações foram se estabelecendo em espectro, se institucionalizando na política e doutrinando pessoas para serem contra a (re)existência da diversidade e liberdade das pessoas LGBTQIA+ como quem basicamente cria militares e aliados em uma guerra, e com uma tática conhecida há séculos; convencendo através da fé. 

A cultura de negar e apagar a existência da população não hetero e queer do país, ligada a ideia de que ser heterossexual e religioso é moralmente aceitável e tudo que não expressa isso é abominável, acabou impossibilitando a erradicação de todas as discriminações e fobias, prejudicando a vida das pessoas pertencentes a essa comunidade nas fases mais importantes no que se refere a desenvolvimento humano, como a infância por exemplo.  Indo diretamente na direção contrária a garantia dos direitos da liberdade de expressão nesse contexto, podemos considerar então, a família como primeira instituição responsável pelo contato inicial com o veto da personalidade autêntica e as liberdades essenciais para o crescimento saudável. Esse grupo não é exatamente o pioneiro no processo de desumanização e apagamento da diversidade, na verdade; é uma instituição que passa pela mesma análise social e então reproduz de geração em geração crenças tão disfuncionais, apesar de acreditarmos que seja cada vez menos, a culpa, a dúvida e o medo ainda são muito presentes no nosso dia-a-dia. 

Quando então, de forma aleatória algum membro do grupo não nasce e se desenvolve como a família deseja, considerando aqui a identificação familiar como algo que transcende o laço sanguíneo e alcança a cultura e o comportamento tanto coletivo quanto individual, principalmente nos primeiros anos de vida, as crenças e valores se chocam e toda a frustração, medo, desconhecimento e insegurança do grupo é transmitido para a pessoa que não se encaixa nas características daquele contexto familiar, só que de forma gradual, acompanhando seu crescimento, fazendo com que as piores sensações cresçam junto e acabam por se expressar em todas as áreas de sua personalidade, prejudicando a confiança em si mesmo, a projeção do ideal de felicidade, a segurança e com certeza a saúde. 

A culpa é intensa e presente em grande parte dessa vida não heteronormativa, mas principalmente no momento em que se tem certeza de quem é, e isso passa a ficar evidente nas relações interpessoais com a família e a sociedade é visceral, é uma herança imposta com muita força psíquica por todos esses grupos, é o castigo que não faz sentido, mas pela razão de estarmos cercados de tanta hipocrisia e opressão é sentido. “Casamento, é entre homem e mulher, o resto não” Ouve-se frequentemente de conservadores na sociedade, e essas pessoas quase sempre estão em posições de poder, infelizmente.  

 Todos esses sentimentos negativos projetados pela sociedade são absorvidos pela criança, jovem ou adulto LGBTQIA+, que passa a carregar vergonha e sempre há presença do medo. Essa confusão mental de tantas incertezas causa ansiedade, depressão, episódios de pânico e diversos outros transtornos mentais. Tal pressão bloqueia os acessos e diminui nossas potencialidades inicialmente, impede o autoconhecimento e promove a privação do prazer sexual e o prazer de vida, levando muitas vezes ao suicídio. Como sobreviver sem o apoio da família? Por qual razão eu vim dessa forma? Será que um dia eu serei feliz sendo eu mesma(o)? Eram as questões mais frequentes, hoje após algumas conquistas, mas ainda tão vulneráveis aos desejos da mesma parcela que nos oprime, questiono; quem vai nos ressarcir por isso? Como essas milhões de pessoas serão reparadas? 

Hoje pode-se crer que a realidade está mudando, mas ainda somos o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, ainda é recorrente os casos de homofobia, bifobia, e todo tipo de violência e assédio. A população LGBTQIA+ preta é ainda mais negligenciada, é ao extremo, suas questões são evitadas até mesmo no grupo em que pertencem e suas vidas são atravessadas de forma em que estão na linha de frente quando se conversa sobre falta de afeto, falta de acesso e até mesmo violência policial, que é um exemplo muito claro da institucionalização das discriminações, fazendo manutenção do nosso medo, da culpa que não deveríamos sentir,  e do apagamento das nossas demandas, já que além da violência que eles mesmos produzem, adotam diversas outras abordagens que desmerecem as denúncias de ocorrência em que somos vítimas. 

Apesar de termos a internet como espaço de discussão e compartilhamento, como podemos lidar com todas essas defasagens em vista de que a internet como ferramenta ainda não é o suficiente e ainda existem milhares de nós crescendo com essa culpa e esse medo de ser original, sem a oportunidade de se expressar com conforto e segurança, ficando ainda muito restrita.

Precisamos funcionar como rede de apoio,  acessibilizar as informações mais relevantes, elencar as prioridades, integrar todos os grupos, ocupar os lugares, votar, alinhar o discurso e estar mais presente na luta contra a institucionalização dos preconceitos de qualquer natureza. 

Entendo que assim como foi passado de geração em geração que tínhamos que sentir vergonha e culpa de quem nós somos, passaremos de geração em geração que desde muito antes de Stonewall, temos orgulho.   


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João Vitor Borges

Psicólogo Clínico e Social. Escreve textos e reflexões gerais com ênfase em comportamento social e saúde mental.