Estar na Pele do Carlos: Página 06

Não sei vocês, amigos leitores do Bem do Estar, mas eu já era viciado em seriados de TV muito antes de ficar confinado. Sou da época em que se esperava um mísero episódio semanal (tenho trauma, não assisto nada que não tenha pelo menos 2 ou 3 episódios liberados) e o streaming me trouxe uma liberdade imensa no que diz respeito ao que eu assisto, quando e como. Já muito antes desta mudança drástica na forma de assistir conteúdos eu havia, por exemplo, parado de ver novelas, pois este formato que me obrigava a ficar plantado na frente da TV - 6 dias por semana me fazia sentir escravizado. Fora que a história é arrastada, porque, afinal, tem que durar meses, ui... deus me livre. Inclusive, a possibilidade de ver minhas séries no meu tempo, sem expectativas, diminuiu demais minha ansiedade neste sentido.

E no vão desta quantidade enorme de novas séries, temporadas e reboots, em dezembro a HBO lançou “And Just Like That”, continuação da aclamada “Sex and The City” (SATC), que contava a história de quatro amigas solteiras e suas aventuras amorosas em NYC. A protagonista Carrie, personagem de Sarah Jessica Parker, tinha uma coluna no jornal local em que narrava alguns assuntos vividos em sua história com Mr Big (com quem ela se casa ao final do primeiro filme e, sim – a sequência gerou 2 filmes, que concluíram aquela época da história) e de suas amigas, estereótipos bem claros da mulher adulta solteira dos anos 2.000: Charlotte, a sentimental recatada, Miranda, a profissional masculinizada e frígida, e Samantha, a mulher independente, sexual e avessa à relacionamentos. A série acontece nos dias de hoje, e como toda continuação, precisou passar por uma recauchutagem completa no quesito comportamental, principalmente com relação a diversidade, seja ela cultural, de etnias e sexual. Muita coisa mudou nos últimos 20 anos, e tudo isso precisa mesmo ser retratado.

Eu vejo SATC por duas coisas: diálogo fácil e figurino maravilhoso. Nunca parei realmente pra pensar nos dilemas morais, nem na época do original, nem agora. Fico reparando nos sapatos e na saia de tule que, no atual, veio em versão calda-de-noiva, e eu amei. Julguem-me. Foi então que minha amiga mais bem sucedida, linda, ruiva, que mora em Miami (Mi, te amo, olha no que deu) me disse que tava um pouco perdida no enredo e me mandou uma matéria do NY Times que me deixou totalmente perplexo sobre como o diálogo estava equivocado em diversos pontos.

Ilustração de Carlos Stefano

Embora o esforço deva ser mesmo reconhecido em termos de inclusão, a história precisa fazer sentido e ficou devendo neste sentido. Cynthia Nixon, a Miranda, se assumiu gay neste meio tempo, e exigiu mais representatividade para voltar. Porém, o drama que a personagem vive na série ficou extremamente forçado, como todo o enredo. Charlotte descobre nesta idade que não tem amigos negros, e sai em busca disso. A forma como Carrie, recém-viúva, e as outras encaram um podcast do qual ela faz parte, como se fosse algo de outro mundo, soa muito fake, desculpe. Onde elas estavam nos últimos 20 anos? 

Aí você se pergunta: o que isso tem a ver com saúde da mente e o tema geral do Estar na Pele? O principal problema do roteiro, nas palavras do NY Times (e quem sou eu pra desdizer) é que as personagens não parecem agir como amigas de 55 anos de longa data, principalmente quando uma delas acaba de perder o marido. Charlotte e Miranda batem boca o tempo todo sobre cor de cabelo, ou porque uma bebe, ou porque a outra não aceita a filha descobrindo-se trans, tudo isso em um café da manhã em cima de omeletes (palavras do jornal), tudo isso frente a uma Carrie apática e estranha em luto. Miranda transa com Che (novo personagem, trans) na cozinha de Carrie com a amiga dormindo miserável na cama ao lado! Que amiga de longa data faz isso? 

Todos sabemos que, em meio a uma crise emocional, além de ajuda médica, o mais importante pro paciente é ter rede de apoio. Nem todos têm este privilégio, mas amigos de longa data definitivamente deveriam ter. A sensação que nos passa é que elas são amigas de 20 e poucos anos brigando por picuinha. 

Amigas de longa data não julgam a decisão do outro de deixar o cabelo branco, pois sabem os motivos pra isso, mesmo que não sejam falados. Nem julgam a outra por não saber lidar com a mudança de sexo da filha, pois sabem que é um processo, conhecem os sonhos, conhecem os defeitos da outra e sabem a hora de se posicionar, ou apenas de ouvir. Amigas de longa data não discutem seus problemas na mesa com a amiga recém viúva. O plot da série (enredo em inglês, amo esta palavra) é justamente a relação de amor e segura-barra entre elas, mesmo sendo tão diferentes. Aliás, sinceramente esta é uma observação minha, ninguém ama esta amiga a ponto de sugerir que ela vá ao médico? Porque ela está claramente depressiva. Matam o marido dela pra gerar história pra série e não oferecem nem uma ajuda profissional pra coitada? Desculpem a piada de mal gosto, mas não me contive. 

Todo ser humano que se preze deseja, conscientemente ou não, uma amizade de longa data. Pra ser justo, amigos de longa data dormem de conchinha com o outro, se ele estiver precisando, como Miranda fez com Carrie em uma cena linda e terna. Mas não transa com o chefe trans da outra no dia seguinte, na cozinha, a vista da amiga triste. Levando em consideração que amigos há séculos implica uma certa idade no contexto, mulheres mais experientes sabem controlar seus impulsos sexuais, não pela falta de libido, mas sim por amor ao outro. Por esta cena, a gente nota que o problema não é a falta de entendimento da dinâmica entre duas amigas nesta idade e neste momento da vida de uma delas, mas preferiram gerar buchicho pra render audiência. 

Eles pensaram tanto em diversidade, que esqueceram outro termo que é bem citado hoje em dia: sororidade. Pra quem não conhece, significa uma aliança entre mulheres, relevando suas críticas e priorizando a união entre elas. Aprendemos tanto sobre isso, mesmo sem saber, na série original, e eles me trazem estas mulheres desconectadas e “petizentas”? Não dá pra entender. 

Deixando as brincadeiras de lado, eu penso que o que minha amiga e o jornalista do Times viu, e que eu reconheci após ser alertado, é que amigas de longa data são, dia após dia, mais compreensivas e menos julgadoras, mais presentes e menos alienadas, mais amor e menos crítica. 

Talvez eu esteja viajando, ou apenas seja o meu olhar crítico sobre amizades de muito tempo (se já leram meus pensamentos antes, sabem da importância dos meus na minha vida), mas todos os momentos difíceis e crises existenciais que eu vivi até hoje tem algum amigo de longa data, que me conhece mais do que eu mesmo e que me ajudou de alguma forma decisiva.  Em dias tão sombrios de isolamento e solidão, seria bom ver amigos sendo amigos.


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Carlos Stefano 

Gestor comercial, decorador, escritor e aficionado por relações humanas e suas ramificações, ele divide suas experiências na coluna Estar na Pele aqui do Bem do Estar.