Refém da solidão

Vai ver até que essa vida é morte
E a morte é
A vida que se quer

Baden Powell / Paulo Cesar Pinheiro


Prevenção do suicídio. Este tema pode facilmente remeter aos saberes apresentados pela religião ou pelos protocolos científicos. Inclusive, aquele, que muitos entendem como o maior especialista do conhecimento hoje em dia, o Google, concentra os melhores protocolos contra o suicídio. Em que pesem seus estudos e bases teóricas qualificadas, esses protocolos, no entanto, não têm sido suficientes para diminuir as estatísticas de suicídio no Mundo.   

Foto: MD. MOSAROF / Unsplash

Não se pretende aqui negar nenhum desses princípios religiosos ou científicos, mas, antes que oferecer respostas, levantar questões sobre a invenção subjetiva que cada um elege na tentativa de sustentar sua própria existência. Assim como outros textos que venho escrevendo para o Bem do Estar, prefiro inverter a lógica quando se trata de abordar o sofrimento humano.

Discutir o suicídio implica falar sobre a vida, não sobre a morte.

Visto como último recurso por aquele que o comete, o suicídio envolve questões éticas e morais. Suicidar-se é uma escolha daquele que não vê escolha. Uma vez que a morte é parceira inseparável da vida, é preciso acreditar naquela para que se possa sustentar a própria existência. Aí reside o paradoxo.

É a certeza da morte que impulsiona e movimenta a vida.

A ideia da imortalidade é, como disse Lacan, insuportável, pois não haveria motivos para construir a própria história. Em contrapartida, acreditar só na morte pode levar ao suicídio. E aqui, estamos falando da impossibilidade da possibilidade, isto é, da falta de diálogo possível para tratar a angústia.

No último texto que escrevi para o Bem do Estar, levantei algumas considerações sobre as novas formas de estabelecimento de relações pessoais decorrentes do advento das redes sociais. Atualmente, o valor imaginário destinado a elas vem se tornando muito mais determinante da construção do próprio Eu que as relações presenciais, estas imprescindíveis à existência humana. 

No caso do suicídio, relações virtuais podem ser até perigosas, já que, na maioria esmagadora das vezes, nas redes sociais não se encontram respostas para questões existenciais.

Quando a subjetividade é posta em questão, ela necessita de um interlocutor real, de um outro e de um corpo vivo que possa olhar e ouvir. Não é invasão de privacidade entrar no quarto de um filho, de irmão ou vizinho que passa o dia trancado, que está em sofrimento ou que possa desenvolvê-lo nessas condições.

Quando o romance Werther, de Goethe, foi publicado, em 1744, causou uma onda de comoção por toda a Europa e o aumento da taxa de suicídio entre os jovens. Em 1995, o filme Kids polemizou questões existenciais da adolescência. As duas obras tratam de valores, sentimentos e conflitos próprios da condição existencial de seus respectivos tempos históricos. Como o mal-estar contemporâneo não é o mesmo desses dois momentos, diante das novas formas de relacionamento social ouso dizer que vem se tornando necessário inventar um novo discurso que dialogue com o vazio deixado pelo mundo virtual. 

 Neste momento, o desejo de viver parece estar menos articulado a uma questão existencial do ser do que com as experiências momentâneas e fugazes, com as frouxas relações sociais. As conexões com aquilo que o desejo está articulado parecem não se ancorar ou fixar-se na existência.

Quando o indivíduo se depara com aquilo que vacila em sua existência pode lhe parecer mais fácil deletar-se, subtrair-se da cena, quase como uma imagem de computador ou um bloqueio de um grupo de whatsapp.

Em contrapartida, somente as relações sociais podem garantir e prevenir a continuidade da vida. Como o que está em questão é a vida, a pergunta que emerge diante do suicídio é pelo momento em que se perde o desejo dela, a ponto de restar apenas a perspectiva da morte, e pelo que mantém vivo o indivíduo. O sofrimento é singular, e a angústia pode ser desesperadora. 

Torna-se ainda necessário questionar a normatização das diversas tensões pessoais e sociais que geram o sofrimento e, a partir daí, encontrar uma resposta para ele. Não são românticas as mutilações corporais dos jovens, tampouco elas resultam de um esforço para chamar a atenção. Se não há palavra para descrever e dar nome ao sofrimento ou, mais grave ainda, se não há a escuta, há o ato que pode ser fatal. A fala, o olho no olho ou o pedido de uma ajuda profissional podem prevenir a tentativa da passagem o ato.

***

Mirmila Musse

Tem experiência nas áreas de Psicanálise, Gestão Institucional e Saúde Pública, atuando principalmente em temas relacionados à população em extrema vulnerabilidade social. Estes doze anos de experiência profissional foram perpassados pelo interesse entre a relação da subjetividade humana e o mal estar da civilização.