Somos seres de interrogação por não termos essência?

O psicanalista Jaques Lacan, coloca que nossa existência precede a essência. Não somos seres de essência como a abelha que já nasce sabendo produzir hexágonos perfeitos de sua colmeia sempre da mesma forma há anos. Nós, seres humanos, nascemos desamparados em uma verdadeira ignorância. Não sabemos nos manter no mundo e passamos a depender de uma outra pessoa para sobreviver.

Foto: Stefano Pollio / Unsplash

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Essa outra pessoa nos dá um nome, “interpreta” o nosso choro de bebê como se cada choro exprimisse uma necessidade ou vontade, idealiza o nosso futuro e nos diz como deve ser. Passamos a nos “espelhar” nessa pessoa e em outras com a finalidade de tê-las como modelo, como um ponto de partida para nos relacionar no mundo. Nessa perspectiva, em a carta à Izambard de 13 de maio de 1871, Arthur Rimbaud, escreve: “É errado dizer: Eu penso. Deveríamos dizer: Pensam-me”. 

Nós precisamos ser envolvidos pelo outro para entrar no mundo com ser humano, em desdobramento dessa circunstância, por vezes, conseguimos dar conta que em inúmeras situações somos escravos da expectativa desse outro. Pois se desviamos dessa idealização que o outro cobriu sobre a nossa pessoa, possivelmente não teríamos a aprovação desse outro, nos levando a ter a sensação de estar faltando algo. 

Então será que a nossa experiência de viver se restringe a estar nesse movimento de reapresentar o que aprendemos e nos avaliar a partir da aceitação do grupo de pessoas que estamos inseridos?

Como somos seres incompletos por não possuir uma essência natural tentamos nos completar a partir da nossa relação com o outro, tentativas essas onde na maior parte das vezes não é bem sucedida. 

Assim podemos nos permitir pensar que existe algo ainda não compreensível entre a essência do ser humano e a não completude da sociedade que estamos inseridos. Pois se nascemos numa tremenda ignorância necessitando de cuidado indispensável para sobreviver, aprendendo como se expressar na vida a partir do que observamos das pessoas mais próximas e mesmo assim não somos validados por elas, existe algo a mais em mim que não me foi conhecido, algo de nós fica de fora, sobra, fica perdido, algo que é estranho a nós mesmos porque nosso grupo de pessoas mais próximo não foi possível de nos dar, ensinar, falar, demonstrar.

Há algo nosso que é radicalmente singular de forma não dicotômica estranho e infamiliar.

Essa estranheza que vem ao não nos reconhecer nos presenteia com um certo infinito e liberdade atrelados a responsabilidade. Infinito ao percebermos que há um impossível de compreender tudo sobre mim; liberdade ao não estar predeterminado e, por assim, poder dar livre engajamento de sentido que melhor se alinha a própria singularidade. Ambos atrelados a responsabilidade, pois assim, posso passear no mundo me servindo desse estranho ao colocá-lo como estilo de vida e tendo notícias de mim por aí...

Devemos nos sentir inseguro quanto a falta de essência e garantia por não sermos seres pré-determinados ou devemos exercitar nossa diferença em ser inventivos e responsáveis? 


Bernard, S. (1960) Oeuvres. Paris: Garnier. FORESTIER, L. (2004) Oeuvres complètes/correspondance. Paris: Robert Lafont.

Forbes, J. Inconsciente e Responsabilidade: Psicanálise para o Século XX. Barueri: Manole, 2012. 

Lacan, J. (1964) O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos da Fundamentais da Psicanálise

Kojève, A. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro, Contraponto, 2002


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Jéssica Magalhães 

Sempre foi curiosa quanto aos sentimento contraditório do ser humano e se questiona como que a partir dessa ambivalência as pessoas podem se beneficiar na vida.

Psicóloga e psicanalista, membro do corpo de formação em psicanálise e do núcleo de reprodução assistida humana do Instituto de Psicanálise de São Paulo.