Sobre culpa, arrependimentos e a máquina do tempo mental

“Eu deveria saber que ele não aceitaria essa proposta desse jeito. Estava na cara que o preço estava muito alto.”

“Eu deveria ter ido viajar logo no começo do ano para me reunir com eles. Agora com essa pandemia toda, não consigo e os negócios vão atrasar.”

“Eu devia ter mudado de emprego um ano antes, pois aí teria me preparado melhor para o nascimento da minha filha.”

“Se eu soubesse que ela reagiria dessa forma, não teria dito aquilo. Agora me sinto culpado pelo que aconteceu. Eu deveria ter percebido e nem tocado no assunto.”

Foto: Marcos Paulo Prado / Unsplash

Foto: Marcos Paulo Prado / Unsplash

Estes exemplos se enquadram naquilo que chamo de fantasia da máquina do tempo. É uma armadilha que nos coloca em uma situação de culpa ou arrependimento, que por sua vez surgem somente depois que o resultado de uma determinada ação aconteceu. Eu faço algo, vejo o resultado ou consequência que isto causou, e no mesmo momento sinto culpa ou arrependimento por não ter feito diferente, me colocando na máquina do tempo e me culpando por não ter feito diferente.

É absurdo, comum e cruel. Vejo acontecer o tempo todo. Comigo também.

Para mim é muito claro quando vejo acontecendo com os outros. A armadilha se mostra com nitidez se você está atento. Quando acontece comigo mesmo, o esforço para perceber é maior. Esse é um hábito sorrateiro, embrenhado em nosso jeito de operar no mundo.

Ao mesmo tempo que somos seres criativos, somos também máquinas de criação de culpa e arrependimento.

Claro, nem toda culpa é fantasiosa. Nem todo arrependimento é inútil. Então quero provocar uma reflexão aqui: quando é culpa e quando não é? Em quais situações o arrependimento pode estar a serviço de um processo de amadurecimento pessoal e em quais situações é um auto chicoteamento irracional? Em quais doses a culpa de fato nos faz crescer em potência e responsabilidade de agir e em quais doses nos paralisa?

Pode fazer sentido começarmos esta reflexão com a seguinte pergunta: até onde vai o nosso controle ou capacidade de influência nos resultados das coisas no mundo?

Vivemos em um mundo onde tudo influencia tudo. Tudo afeta tudo. Não acredito que seja possível isolar as nossas ações em um ambiente perfeitamente controlado. Só em laboratório, e olhe lá.

Então, de início, somos parte de um todo, que se afeta continuamente, de modos diferentes e em proporções diferentes.

Neste exato momento, enquanto escrevo este texto, a janela do meu escritório está aberta, o clima está confortável, às vezes o choro da minha filha e os barulhos da rua me afetam, assim como a minha posição na cadeira. Pensamentos sobre outras obrigações, desejos e medos irrompem sem aviso. Certamente tudo isto, de maneiras distintas, não proporcionais, afetam o que escrevo aqui agora.

Se eu estiver de mau humor, com dores, ou sem dormir, certamente isto afetará a forma como eu terei aquela conversa difícil de feedback com o meu chefe ou aquela negociação mais acalorada com um cliente.

Então, analisando o momento em que uma ação inicia, já partimos de um lugar sob inúmeras influências. Como controlar o resultado se não controlo o que me influencia no início e durante o processo?

Como segundo ponto neste fluxo ação-resultado, temos o resultado em si, ou consequência, da ação inicial. Se temos infinitos fatores de influência no primeiro ato, também temos inúmeros fatores influenciando a consequência do ato.

A forma como a pessoa vai receber o que você está dizendo ou fazendo, por exemplo, dependerá de como esta pessoa está neste momento.

Depende também de quanto tempo essa pessoa passou processando o que você disse. Se você mandou um email ou whatsapp, a pessoa pode ir processando a sua mensagem de formas diferentes ao longo do tempo, pois quanto mais tempo, mais influências acontecendo. 

Tudo isto pode ser um começo de reflexão sobre até onde vai o nosso controle sobre as consequências do que fazemos. Aparentemente há algumas áreas e coisas onde esse controle é maior. Dá para construir um prédio, fazer uma receita de bolo, enviar um robô para marte com um ótimo grau de previsibilidade do resultado final. A engenharia, a mecânica, a química, mostram isso há muitos anos. 

Eu tenho a sensação de que este nível de previsibilidade diminui conforme aumenta a organicidade da coisa. Construir um prédio, ok. Cimento, tijolos, ferro. Entender um vírus, desenvolver uma vacina, entender o cérebro, entender a depressão, o amor, bem menos previsível. Se é difícil entender os seres ou partes orgânicas isoladas, quando você as tenta entender em relação com outras partes orgânicas então...a certeza escorre por entre os dedos.

Pegando este gancho, um dos conhecimentos que me permitiu ter uma qualidade de vida, clareza e lucidez maiores foi a Complexidade. Em sistemas complexos a relação ação-consequência tem altos níveis de imprevisibilidade. O nível de controle sobre o resultado final beira zero. O mundo está cheio de exemplos de sistemas complexos: clima, uso de drogas, transtornos da mente, relação com o trabalho, redes sociais. Inúmeros. 

Não resta dúvidas que a nossa vida cotidiana se baseia em um sistema complexo. Desde o nosso corpo, passando pela nossa família, nosso trabalho até níveis mais macro como nossa cidade, país e o nosso meio-ambiente, estamos em um enorme rizoma.

E por que então sentimos tanta culpa assim pelos resultados das coisas? Por que tanto arrependimento, tanto remorso? De onde vem essa certeza tão arrogante que somos culpados por todas as consequências ruins do que nos orbita? Não somos tão onipotentes assim. Calma.

Por outro lado, posso então me isentar, estar indiferente, não me comprometer, não me implicar? Calma, de novo.

Eu aplico em minha vida uma mentalidade de ofertar a minha melhor aposta, com base no meu melhor preparo, treino, reflexão e estudo que for possível.

Se eu tiver uma reunião de negociação com o meu cliente mais importante, o máximo que posso fazer é me preparar, treinar, pedir ajuda, criar algo que chamo de uma aposta para aquela situação. Não sei como a conversa vai terminar, mas eu faço uma aposta e me preparo. Não dá para fazer muito mais que isso.

Infinitas coisas podem influenciar esta interação levando o resultado final para mais perto ou mais longe da aposta que fiz antes. 

A partir do momento em que eu lanço este aviãozinho de papel, muita coisa pode acontecer. Não faz sentido eu me sentir culpado se, no momento do lançamento, vier uma rajada de vento e jogá-lo contra o muro. Não tenho este direito de massacrar tanto minha alma. Sejamos mais gentis com a gente mesmo. Se adaptar, quando isso acontece, é o que dá para fazer.

Ofereça a sua melhor aposta, com o cuidado e preparo que você conseguir. E se for possível, prepare redes de proteção. Faça um pequeno teste, um protótipo. Peça para sua mãe provar o prato antes de servir no restaurante. 

O resto é observação e aprendizado para o próximo aviãozinho de papel. Por isso a maturidade vem somente com o passar dos anos, na minha opinião. Não tem como. É observação e auto-observação contínua. Observar o quanto nos culpamos pode ser um caminho potente para mais maturidade de si.

O mundo e a vida são tão complexos, que é uma questão de sobrevivência e qualidade de vida mental urgente repensarmos nossas culpas e arrependimentos.


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João Paulo Ferreira

Coach ontológico, pós-graduado em Finanças pelo Insper e executivo do mercado financeiro.