A presença que conecta

Costuma-se ter o entendimento de que “estar presente” significa estar fisicamente próximo de outra pessoa. A pandemia que iniciou em 2020 até nos fez repensar esse modelo e as tecnologias foram importantes aliadas para que pudéssemos manter contato com outras pessoas mesmo com as restrições do isolamento social.

Foto: Robson Hatsukami Morgan / Unsplash

Foto: Robson Hatsukami Morgan / Unsplash

Proponho um olhar diferente hoje, em que o sentido de “estar presente” significa “gerar conexão”, consigo e com o outro. Essa proposta surge a partir da observação de que existe um padrão culturalmente aprendido de comportamento em que fazemos tudo a partir de uma sensação de ter que, da culpa, da vergonha, da obrigação, para ganhar uma recompensa, para não ser punido. Há uma pressão coletiva inconsciente que nos condiciona a uma rotina automática, sem escolhas conscientes e autênticas sobre o que fazemos, estamos apenas tentando nos encaixar no padrão, atender às expectativas, ser normais. Há também a crença de que devemos ser multitarefas e cumprir com perfeição diversos papéis na sociedade, o que nos impõe cobranças que serão pagas à juros altos. Por exemplo, atualmente há a crença de que a mulher tem que ser uma profissional bem sucedida que produz em alta performance constantemente, além de ser uma mãe dedicada e envolvida com todas as atividades escolares, extracurriculares e sociais do filho e cuidar de todos os afazeres da casa; no dia em que essa mulher não conseguir manter esse padrão de excelência vários julgamentos surgirão (dela própria ou de pessoas em torno dela) e ela poderá se sentir frustrada, incompetente. O mais trágico desse exemplo, é que essa mulher não se sentirá confortável em expressar esses sentimentos para ninguém, pois ela os rejeita e quer reprimi-los, já que a fazem sentir como se não fosse boa o suficiente como deveria ser e ela não quer que ninguém saiba disso, além de que há outra crença de que ela não pode perder tempo com “mimimi”, afinal precisa dar conta de tudo. É um ciclo destrutivo que se retroalimenta e nos faz acumular cada vez mais sentimentos desconfortáveis e buscar fórmulas rápidas e eficientes para reprimi-los e amenizar o desconforto - p.ex. uso de medicamentos sem prescrição médica, abuso de bebidas alcoólicas, comida, compras, etc -, visto que se torna cada vez mais intenso até que o organismo não sustenta, a bomba estoura e as crises se manifestam (depressão, síndrome do pânico, entre outros transtornos mentais). Isso representa a total desconexão consigo, que refletirá em desconexão com o outro, pois como conseguiremos nos conectar com o outro, dar atenção, escutá-lo e apoiá-lo em suas necessidades quando não conseguimos fazer isso por nós? Convido você a refletir: por que você faz o que faz? Quantos “eu tenho que...” você está assumindo na sua vida? Que sentimentos emergem quando você pensa sobre isso?

Como sair desse ciclo e acolher esses sentimentos desconfortáveis e, ainda mais importante, compreender a causa desses sentimentos (as necessidades humanas que ficaram desatendidas, como falamos na prática da comunicação não violenta – CNV) e conseguir fazer escolhas conscientes, que cuidem de nós e do outro? Faz-se essencial mudar o paradigma desse modo de viver e isso é possível já que esse modo de viver é uma escolha que cada um de nós faz diariamente, ainda que de forma inconsciente. Aqui vale o ensinamento de John Welwood:

O agente de crescimento e de transformação mais poderoso é algo muito mais simples que qualquer técnica: é a mudança de intenção
— John Welwood

Práticas que nos convidam a estar presentes nos apoiam nessa mudança a partir do processo de autoconhecimento, que possibilita gerar conexão consigo e com o outro. Estar presente é vivenciar o momento que acontece a cada instante, é estar conectado com cada situação, ser humano e sensação que emerge a partir do que estamos vivenciando no aqui e agora. Abandona-se a rotina automática, pois coloca-se em alerta e observa-se com atenção o que se está vivendo, sem julgamentos de certo ou errado, apenas se permitindo tomar consciência desse processo.

Conectar-se com o próprio corpo e entender sua linguagem é um dos caminhos que nos possibilita acessar o estado de presença e gerar conexão.

Nosso corpo conversa com a gente, dá sinais relevantes sobre a qualidade do nosso estar, observando-o atentamente podemos perceber se estamos alinhados com nossas necessidades humanas ou se estamos vivenciando alguma desordem emocional por não estarmos contemplados sobre algo que é importante para nós (se alguma necessidade nossa está desatendida). Nosso corpo conta nossa própria história.

Há diversos recursos disponíveis para tomarmos consciência do nosso corpo e da qualidade do nosso estar – p.ex. práticas de focalização de atenção, meditação, yoga são grandes aliadas no processo de aquietação da mente e conexão com nosso interior, nossa energia vital espiritual (que independe de religião) e nosso corpo físico. A CNV é mais um maravilhoso recurso disponível para exercitarmos o estado de presença e conexão, pois ela nos convida a observar com profundidade para o que está vivo em nós, a compreender nossos sentimentos e o que eles nos contam sobre nossas necessidades em cada situação e a buscar formas de tornar nossa vida melhor.

Gosto de praticar yoga porque me estimula a concentrar minha atenção plena na respiração, na minha energia, nos limites e nas possibilidades do meu corpo, e a prática da CNV me convida e apoia a observar e sentir o que meu corpo está me pedindo naquele exato momento, a perceber a fluidez da minha energia e a entender de forma mais consciente como posso lidar melhor com cada situação que vivencio - p.ex. quando percebo que minha energia está em expansão, são momentos em que costumo me sentir mais produtiva, disposta e animada, sendo assim, posso me organizar para realizar atividades físicas mais intensas e concentrar interações sociais para esse período; quando percebo que minha energia está retraída, observo mais latente a necessidade de introspecção, restauração da energia e acolhimento e posso organizar minhas atividades para ter um tempo de resguardo e práticas de relaxamento e autocuidado. Nem sempre conseguiremos conciliar essas questões, entretanto, tendo consciência sobre o nosso estar, teremos mais chances de lidar melhor com essas situações, ainda que a escolha seja por vivenciar algum desconforto, pois essa experiência será uma opção consciente, não apenas porque “temos que...”, e respeitará a conexão consigo e com o outro.

Exercitar práticas de presença, atenção plena e conexão corporal proporciona autoconhecimento e apoia na compreensão de nosso comportamento dentro de cada contexto social que vivenciamos e, a partir disso, é possível encontrar chaves para mudanças que garantirão uma experiência mais saudável e satisfatória na jornada da vida, pois estará mais conectada com o que está vivo em cada um de nós.

As práticas comentadas aqui são alguns exemplos, existem diversas outras, às vezes até algo simples do cotidiano pode ser um ponto de partida. Tudo aqui é um convite, o importante é que cada um encontre o que lhe contempla, o que lhe é confortável e que a escolha seja consciente e livre, sem o velho conhecido “você tem que...”. Como incentivo encerro com a seguinte frase, que ouvi da minha orientadora de CNV:

A prática é a parte mais difícil do aprendizado e o treinamento é a essência da transformação.

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Debora Andrade

Aprendiz da vida, em constante (des/re)construção, praticante de yoga, meditação e trekking, energizada pela natureza, interessada em temas relacionados ao autoconhecimento, gestão das emoções, relacionamentos interpessoais e integração do ser humano com a natureza. Multiplicadora da Comunicação Não Violenta e mediadora de conflitos com ênfase em mediação familiar. Dedico-me a projetos que envolvam a construção de conexões humanas por meio da CNV, da mediação de conflitos e outras práticas que estimulem a autoconexão.