Você não é o que você posta

Os desenvolvimentos tecnológicos que estão na base da “era digital” vêm sendo considerados como uma espécie de quarta revolução industrial. Dentre suas inúmeras consequências, interessa aqui as mudanças impostas à forma como as pessoas passaram a se relacionar. A comunicação virtual instaurou uma aparente aproximação. A tela que separa você do outro contém, no entanto, um paradoxo: como um véu, estabelece uma barreira ao interlocutor, gerando distanciamento ao mesmo tempo em que enfraquece a interdição ao que pode ser dito. 

Foto: Laura Chouette / Unsplash

Foto: Laura Chouette / Unsplash

Na comunicação digital, não há corpo, e muitas vezes nem voz, para mediar o diálogo. A ilusão de autonomia, gerada pela ausência física daquele com quem se fala dispensa o gesto habitual de ponderar, de medir o alcance e as consequências do que é dito. Mais ainda, o mundo virtual permite repelir com ódio e repugnância o que se considera desagradável ou diferente. Algumas vezes na clínica pude presenciar falas como: “não sou obrigado; posso bloquear, deletar, fazer outra conta, comprar um novo chip, mudar de número”. 

O ser humano só se constitui como tal na relação presencial que estabelece com o outro ao longo da vida, desde os cuidados ao nascer. Embora seja óbvio, faz-se necessário ressaltar que é falsa a ideia de que valores, princípios, afetos, normas, assim como indagações e reflexões sobre a vida possam ser oferecidas pela comunidade digital. Isso também vale para as questões existenciais suscitadas por experiências e mesmo, pelo sofrimento. Um traço decisivo da vida humana é a necessidade de estabelecer relações pessoais. Trata-se de uma interação da qual não se pode prescindir.

O caráter virtual da comunicação não torna o interlocutor imaginário, ilusório, inexistente ou falso. Mas a tela como filtro do diálogo instaura uma relação mediada mais pelo imaginário do que pela realidade.

A ausência da presença física reforça o narcisismo, o individualismo e a solidão.

A baixa autoestima, sintoma bem contemporâneo do sofrimento moderno, se intensifica na relação virtual, ampliando a sensação e a suposição imaginária de que o outro pode, é ou possui o que lhe falta.

A seleção promovida pelos algoritmos fortalece a predisposição de se comunicar apenas com seus semelhantes e “irmão”. A restrição do diálogo a pares e iguais tende a atrofiar o pensamento, na medida em que desobriga da necessidade de desenvolver argumentos para expor e sustentar ideias e de reagir ao contraditório. Mais ainda, acentua o ódio e a violência quando: “ele não merece minhas palavras e atenção, por isso deixo de investir na relação”. Lembro, com Freud, que o ódio é um sentimento derivado, próprio de quem odeia.

Incapaz de admitir em si mesmo esse algo desconhecido, o sujeito projeta-o no outro, pela rejeição daquilo que não reconhece em si.

O mal entendido é inerente à comunicação. No mundo virtual, no entanto, ele tende imaginariamente a ser suprimido. Tudo pode ser acessado. Mas esse “olho absoluto”, como bem nomeou Gérard Wajcman, não esconde nada. Tampouco mostra, já que quanto mais se olha, menos se vê. Em uma lógica de mão dupla, sem laço social só há segregação recíproca.

Quem segrega o outro, no mesmo movimento, se autossegrega.

A tentativa de se aproximar do outro pelo acompanhamento diário da postagem de mensagens dos amigos oferece um traiçoeiro sentimento de que assim se pode viver e trocar bons momentos, tal como quer convencer a publicidade: “a felicidade só é real quando compartilhada”. O espaço virtual, no entanto, também gera mal entendidos, não esconde faltas, defeitos, nem dores. Ainda bem. Tampouco pode proporcionar prazer ou felicidade, pois aquilo que escapa ou é encoberto nas relações sociais, na vida real; também escapa e é encoberto no mundo virtual.

Nada é fácil ou simples no campo das relações humanas: é necessário fazer concessões, escutar e considerar o outro.

E é isso que define o real e o humano. Sentir prazer e dor é fazer a vida acontecer. Sem afetos, não há vida.

Você não é o que posta. É obrigado, sim, a se relacionar com o outro, se quiser se manter humano. Só por meio da relação pessoal é possível saber quem você é, o que não quer ser e quem planeja vir a ser.

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Mirmila Musse

Tem experiência nas áreas de Psicanálise, Gestão Institucional e Saúde Pública, atuando principalmente em temas relacionados à população em extrema vulnerabilidade social. Estes doze anos de experiência profissional foram perpassados pelo interesse entre a relação da subjetividade humana e o mal estar da civilização.